NIHAT, O AUTODIDACTA DO AZERBAIJÃO
- pmdscortez
- 10 de mai. de 2019
- 6 min de leitura
O vento entra pela janela atrás do conductor e esbarre no meu enorme sorriso ao pensar que as minhas pernas nem cruzadas conseguem caber neste lugar traseiro de um Lada dos anos 90. Mas de que me posso queixar? Estou andar à boleia no meio do Azerbaijão, na expectativa de encontrar vulcões de lama e pela mesma janela que balança os meus caracóis pelo ar consigo ver o imenso Mar Cáspio.
A razão de estar neste Lada encontra-se sentada ao meu lado: Nihat. O meu energético e desenrascado amigo que está numa conversa interminável com o conductor (e que pelo meio já lhe sacou 3 cigarros). Graças à sua persistência e talento para fazer mais com menos dinheiro, estamos a ir até Gobustan poupando os $2 do autocarro. Enquanto o vejo a bracejar entusiasmadamente contando histórias em azeri, apontando a mão que segura o cigarro para mim não consigo deixar de pensar que esta pessoa que me é tão familiar só se cruzou comigo há coisa de duas semanas.
Estava no hostel em Tbilisi, capital da Geórgia numa sessão de partilha de músicas tradicionais. Depois de ouvir uma melodia da Turquia decidi escrever no youtube “Uma Casa Portuguesa”… afinal como é possível não ficar deslumbrado com a voz de Amália? Nihat, com um olhar curioso, aproximou-se do portátil e perguntou-me se podia mostrar-me uma música azeri igualmente bonita.
Desta partilha de músicas, começou uma amizade que se prolongou por mais uns dias de viagem na Geórgia até Nihat ter de voltar para o Azerbaijão (à boleia, claro). Na despedida deixei a promessa que iria visitar Nihat na cidade onde vive e capital do país, Baku.
A minha expectativa a visitar este país que sempre tive problemas em pronunciar e a apontá-lo no mapa, aliada ao facto de ter a oportunidade de conhecer a capital pelos olhos do meu fascinante amigo, foram razões mais que suficiente para embarcar no comboio nocturno de Tbilisi para Baku.
MAS O QUE FAZ DE NIHAT UMA PESSOA ÚNICA?
A história de Nihat começa na Rússia onde nasceu há 22 anos. Quando Putin assumiu o poder no país, várias propriedades e negócios de emigrantes passaram para as mãos do Estado – a mercearia do pai de Nihat seguiu este mesmo destino, atirando a sua família para uma situação económica no mínimo complicada. Aos 8 anos de idade Nihat e a sua família voltaram para o Azerbaijão na perspectiva de encontrar uma vida melhor e desde então a contraditória Baku tem sido o lar de Nihat.

“My serious face”
14 anos depois, Nihat está sentado num bar a brindar uma cerveja com um Português extremamente curioso com a sua história. Assim que a cerveja chega a mesa, abro o meu pequeno caderno e começo a interrogar o meu amigo que não larga os cajus da mesa (afinal são de borla).
Estudou Sociologia como alternativa aos seus estudos de sonho, Relações Internacionais, um curso apenas oferecido por universidades privadas que Nihat não poderia ter acesso. E porquê sociologia? “I want to understand people as a whole”. De acordo com Nihat, sociologia é fulcral para perceber o que motiva as nossas interacções e a forma de como actuamos numa sociedade.
A conversa ganha um contorno diferente quando as minhas perguntas começam a ser orientadas para o país onde estamos, Azerbaijão. Nihat dá um longo gole na sua cerveja, acende um cigarro, olha à sua volta no bar e numa voz mais baixa e tensa aproxima-se de mim:
“I am not happy in Azerbeijan, only close-minded people”
De forma ignorante e algo provocadora, pergunto-lhe se isto está relacionado com a cultura. “Noooooo! The culture is beautiful! The politics is doing everything bad, radio and TV are controlled, organizations for women and children rights don’t work.” Porque é que não funcionam?
“Corruption is everywhere. People are angry and scared but if you protest, your family can lose their jobs and you can go to jail. People are not vandals, but police still beats you”.
O olhar de frustração de Nihat e o seu discurso de desalento não são nenhuma novidade para mim, esta não é a primeira vez que falamos sobre o Azerbaijão. Independente desde 1991, depois da queda da União Soviética, o país tem sido governado pela família Aliyev, que desde 1993 tem acumulado a maior parte da riqueza que o boom de petróleo trouxe na primeira década do século XXI. Apesar do enorme potencial económico do país, o salário médio de um trabalhador na capital ronda os $250, o que revela a enorme discrepância entre a elite governadora e o povo.
Basta caminhar pelas ruas de Baku para nos cruzarmos com edifícios ultra-modernos construídos com o dinheiro do petróleo (ou seja dos contribuintes) completamente vazios. Desde o estádio construído apenas para um evento da Eurovisão até às 3 Torres do Fogo (das quais apenas uma está completamente ocupada) o investimento do governo parece nunca passar pela população que continua a viver em condições bastante precárias. E quase sempre que um investimento público é feito – o aeroporto de Baku, a principal auto-estrada, o novo museu…todos ficam sob o nome de Heydar Aliyev, criando a ideia perversa de que o governo está a fazer um enorme favor ao construir algo para quem o “elegeu”.

4 períodos históricos numa imagem: as termas do Império Otomano, os edifícios ornamentados do Império Russo, arquitectura prática Soviética e no fundo as Torres do Fogo do século XXI
O país é constantemente associado a corrupção. Liberdade de expressão é, literalmente, apenas uma miragem, por isso não admira que Nihat tenha baixado o seu tom de voz apesar do seu sentimento interior de revolta e ambição para mudar a realidade do seu país.
No entanto, existe esperança no horizonte. De acordo com Nihat, a indignação em Baku começa tomar contornos revolucionários que podem levar a uma enorme manifestação capaz de mudar o status quo do Azerbaijão ainda durante este Verão. Por outro lado, este meu amigo não está particularmente esperançoso com o seu futuro – vem aí um ano de serviço (obrigatório) no exército.
“Gray life for one year. No, black life”.
Nihat descreve-me o cenário: todos os dias vai estar rodeado das mesmas pessoas a seguir a mesma rotina e a única música que vai ouvir será uma “playlist” de musicas patrióticas em loop durante uma hora e apenas uma vez por semana. Mas o pior de tudo…só pode ter acesso a livros durante uma hora do seu dia.

Nihat está sempre pronto para uma grande pose
Mas Nihat sendo a pessoa fascinante que é (se ainda não estás convencido, espera até aos próximo parágrafo) já arranjou uma forma de contornar o sistema. Passando dinheiro “por baixo da mesa” é possível ter acesso a livros por mais de uma hora, uma estratégia que faz parte de um plano pessoal bem maior para aprender a programar e ter a possibilidade de trabalhar remotamente.
Um plano ambicioso criado por uma pessoa de curiosidade infinita: aprendeu inglês graças a ver filmes americanos (apesar de termos tido uma conversa de 30 minutos completamente absurda por Nihat referir-se a mim como um “terrorist” em vez de um “tourist”). Agora está empenhado a aprender italiano porque adora a ópera e os filmes clássicos de Itália. Completa o cubo de Rubik em menos de 20 segundos e tornou-se campeão regional de Xadrez na sua região.
A brincar, pergunto-lhe: “E porque não campeão nacional?”. Nihat responde-me que os seus pais estavam desempregados e a entrada no torneio custava 300 AZN (à volta de 170$). Mudo rapidamente o assunto, quero saber como é que o meu amigo imagina o seu futuro.
“I want to be a businessman and help everyone. I want to build a career so that I can help other people”.
Sempre em tom provocador e em jeito de autocrítica à minha licenciatura pergunto se não são esses mesmos businessman que estão por detrás dos problemas sócio-económicos do seu país. Nihat esboça um pequeno sorriso e começa num tom calmo, como quem está prestes a dar uma lição de vida: “As Marx says, money is in the center of everything. Azerbaijan needs good governance. Needs businessman that create opportunities for other people and not for themselves”. Apesar de Nihat precisar de alguma ajuda para construir esta última frase, o seu inglês não vacilou para expressar um pensamento que me marcou:
“The people in Azerbaijan are not bad. You are born on top of a mountain and then you fall down with an avalanche of influences of other people that change you”.
Obviamente que esta não é a frase mais inspiradora ou inovadora que já ouvi. Mas marcou-me por duas razões:
A ideia de que a vida é sobre cair do pico da montanha e não fazer tudo para alcançar esse mesmo pico
Mais importante ainda, o facto de que, um rapaz de 22 anos que viu várias paixões e oportunidade a serem-lhe negadas durante toda a vida por viver num regime opressor, conseguir confiar no valor do ser humano
Depois de um longo interrogatório, fecho o meu caderno e insisto com Nihat que lhe devo um jantar (apesar de ele tentar recusar três vezes). No caminho para o restaurante passamos pelo hostel onde estou a ficar para eu poder ir buscar a minha camisola. Da sala de convívio, começa a surgir uma melodia clássica. Nihat entrou no seu mundo musical e tomou de assalto o piano do hostel. Nunca teve um piano, mas aprendeu a tocar porque sempre que entrava num espaço com um piano aproveitava o ao máximo o tempo para tocar até alguém o expulsar. Hoje em dia é um autodidacta em piano capaz de tocar uma música que faz parar todos os backpackers deste hostel.
Honestamente, por esta altura já nem estou surpreendido.
Təşəkkür edirəm dostum Nihat
(Obrigado meu amigo Nihat)

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