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Blog de Experiencias

Um dia como professor em Bogotá

  • pmdscortez
  • 5 de jun. de 2017
  • 6 min de leitura

Atualizado: 31 de mai. de 2020

Olho pela pequena janela do meu quarto e vejo que a noite ainda cai sobre a capital colombiana. O meu primeiro instinto é ignorar o som “destruidor-de-sonhos” que ecoa no meu quarto, ou seja, o despertador irritante do meu telemóvel. O meu olhar desvia-se para o ecrã que marca 5:00h ao lado de um relógio saltitante e confirma-me o pior cenário…é hora de acordar.

Corro para o duche e enquanto lavo a minha juba de caracóis, prometo-me a mim mesmo que logo à noite deito-me cedo, afinal já chega de “arrastar-me para fora da cama”. Tomo um pequeno-almoço rápido, pego na mochila e saio da Carrera 55, a morada que serve de casa para mim, Welli, Costi, Stef e Daniel. Assim que saio de casa, tenho de voltar atrás: deixei o meu passe em cima da mesa…outra vez.


Assim que ponho os fones e entro no meu mundo musical, contorno a esquina para a Calle 53 e vejo meu espetáculo diário gratuito: o sol a levantar-se por detrás da cordilheira dos Andes. O mau humor matinal desaparece instantaneamente.

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A viagem desconfortável fica imediatamente compensada por esta vista


A minha corrida até à paragem mais perto de casa não é suficiente para apanhar o autocarro que, quase em tom de gozo, despede-se de mim com uma lufada de ar negro. Não preciso de esperar muito até a carrinha azul nº14 voltar a passar e abrir as portas para este português entrar todo marreco, de cabeça encostada no tecto e sob alguns olhares de diversão.


O autocarro deixa-me em Patio Bonito, que convenhamos, de Bonito não tem nada. Um dos bairros mais perigosos de Bogotá, que à primeira vista não parece mais do que uma série de “casas” (ou mais concretamente, paralelepípedos de tijolo laranja) e esquinas que obrigam a desviar o olhar. Mas é passando a superfície assustadora que se descobre a melhor parte: Saludcoop Sur, a escola pública responsável pela educação das crianças deste bairro e ao mesmo tempo…o meu local de trabalho.

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O meu caminho diário para a escola onde trabalhava


“Señor Hernandez, estes chichos están en mi clase”

São 6:33 e por isso os portões da escola fecharam há 3 minutos. Peço ao porteiro da escola para me abrir a porta e comigo levar os alunos que tinham ficado à porta por chegarem atrasados (um dos privilégios de ser professor). Corremos para a Sala de Imersión, criada especialmente para o projecto “Shape Colombia”, um programa ambicioso que pretende trazer pessoas de todo o mundo para ensinar Inglês a jovens dos 7 aos 17, um conhecimento que pode ser crucial para estas crianças colombianas prosperarem em melhores condições do que as do humilde bairro que as acolhe.


É por isso que neste momento corro de mãos dadas a 4 crianças, em direção à sala de aula onde me esperam mais 20 crianças – eu sou um desses que veio “de todo o mundo” com a missão de ajudar.


Entro na sala e peço desculpa a Lyda, a professora assistente que trabalha comigo e com uma história de vida merecedora de um livro dedicado a provar que as origens não determinam o futuro de uma pessoa.Tal como estas crianças da Turma 3, a minha primeira aula do dia, que aprendem as bases de uma língua que pode ser determinante para fugir aos maus vícios do bairro de Patio Bonito.


Com idades entre os 5 e 7 anos optamos por fazer uma aula mais criativa para estes alunos: Lyda imprimiu umas máscaras de animais para serem coloridas durante a aula enquanto os primeiros “pontapés” no inglês começam:

“Tigre, no! Tigeeeer”

“Everybody with me: Tiiiigeeeer!”

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“Se queres alunos contentes, dá-lhes desenhos” – Pedro Cortez


A ideia é os alunos estarem completamente imersos nesta nova língua (daí o nome Sala de Imersión) e assim sendo, evitamos ao máximo falar espanhol. (Aliás, corre o mito que o Profe Pedro não sabe falar espanhol…mas não é fácil manter esta farsa muito tempo).


Faço questão de dar um high five a todos os alunos assim que fazem fila para sair da sala de aula. Os que decidiram tirar férias durante a minha aula não têm direito a receber a minha tão importante despedida e como tal sabem que na próxima aula é para trabalhar.


(Estes momentos diários mostraram-me a importância que um simples gesto pode ter, quem não recebia um high five na aula anterior era, normalmente, um dos alunos mais participativos na aula seguinte).


Assim que a turma 3 sai, entra aos empurrões a turma 5 com idades entre os 11 e 13 anos. Agora já podemos explorar melhor o nível de inglês:

“I like play football”

” I like run”

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Aqui com Julian, um dos alunos mais dedicados da Turma 5


Os alunos vão para a frente do quadro para expressarem os seus gostos. Depois de algumas correcções na construção das frases e no sotaque (os colombianos insistem em ler o “You” como “Ju”), a turma começa a ficar naturalmente agitada. Foi aqui que aprendi um dos truques mais essenciais para qualquer professor, assim que dois ou mais alunos estavam a falar no canto, perguntava:


“Ustedes son novios?”     (Vocês são noivos?)


Imediatamente as caras coradas calam-se depois de um “Baaahhh, noooo!” e os ânimos voltam a acalmar-se. Uns minutos depois a aula termina e está na altura de descansar esta cabeça, afinal nem sempre é tarefa fácil cativar crianças para aprenderem inglês.

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A obra de arte de Elena: O retrato do professor


O meu primeiro intervalo da manhã, por volta das 9:30, é a altura ideal para ir fazer uma visita à Señora Lena, a simpática dona do café mesmo em frente à escola. Passando a porta (ou melhor dizendo, grade), do estabelecimento/casa da Señora Lena (sempre tratada como senhora, não fosse isto a Colômbia) Lyda e eu atravessamos a pequena bancada cheia de snacks para nos sentarmos na cozinha “reservada para nós”… mais um dos privilégios de ser professor.

“Dos tíbios y un café porfa!”

Enquanto como os meus dois ovos cozidos no ponto (tíbios), ouço as mais recentes “novidades” da escola: o aluno de 15 anos que já é pai, os miúdos de 12 anos apanhados a fumar marijuana na casa-de-banho, ou mesmo a criança de 5 anos que vai a pé sozinha para a escola…a lista não acaba. Dou goles cada vez maiores no meu café aguado e lembro-me que o entusiasmo dos meus alunos faz com que me esqueça da situação complicada que muitos atravessam.


A próxima turma está quase a entrar e por isso despeço-me de Señora Lena e pago a módica quantia de 1000 pesos (cerca de 35 cêntimos) pelos ovos e café. Eu e Lyda atravessamos a rua, olhando para os dois lados para não sermos atropelados pelas bicitáxis, o método de transporte público neste bairro, e voltamos a passar pelo portão da Saludcoop Sur.


A terceira aula do dia é com a Turma 6, umas das minhas favoritas já que aqui tenho mais espaço para tornar as aulas mais criativas e dinâmicas. Começo sempre estas aulas com uma pequena apresentação de um país que já visitei, satisfazendo um pedido de um dos alunos mais brilhantes que tive, Ronald. O facto de estes alunos terem uma idade entre os 15 e 17 anos, dá-me a oportunidade de usar maior vocabulário inglês e de deixar estes estudantes “darem” a aula: hoje apresentam um roteiro turístico (em inglês, claro) da sua cidade, Bogotá.

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Na minha festa de despedida com Ronald (esquerda) e Nicolás (direita)


Depois de mais uma aula que passa num instante, saio com alguns alunos para o intervalo mais importante do dia: o grande jogo de futebol de professores contra alunos. Aproveito para lhes relembrar que aqui no campo estamos em equipas distintas e eles também não se fazem de rogados: passados 5 minutos de jogo, já levei duas cuecas e altitude a que estamos (cerca de 2500m) deixa-me ofegante pouco tempo depois.


O jogo na verdade é sempre um bocado agressivo, a febre latina acaba por se manifestar nestes jogos onde os professores colombianos dão mais toques nas pernas dos alunos do que na bola. O resultado, esse fica 3-2 para nós os professores, depois de um penalty inventado a nosso favor, neste jogo definido pelas regras questionáveis dos responsáveis pela educação nesta escola.


Depois de meia hora de correria desenfreada vou até à casa-de-banho para resfrescar a minha cara que nesta altura está comparável a um tomate. Volto para a Sala de Imersión para aquela que é a minha última aula do dia e quando volto a dar por mim são 12:30, a hora que marca o final do meu dia de trabalho (vale a pena falar novamente dos privilégios de professor?).


Volto atravessar a pé Patio Bonito sobre alguns olhares, mas sendo professor dos filhos da maioria das pessoas deste bairro, convenço-me que não vou ter problemas até chegar à estação de autocarro (e o maior problema que tive em 5 meses foi ter de recusar uma cerveja na rua porque estava com pressa).

Sento-me novamente no nº14 depois de mais um dia intenso e com o estômago a roncar, mas a fome vai ter de esperar pelos 40 min de estrada cheia de buracos que ainda estão por fazer.

O que vou fazer durante a tarde nunca é certo: beber uma cerveja com outros participantes do projecto, pegar na máquina e explorar a cidade ou simplesmente ter uma tarde preguiçosa em casa. Mas há uma coisa que é certa: à noite vou cozinhar com Welli,Stef e Costi e não me vou escapar sem ver uma série.


E o “ciclo” vai repetir-se: vou voltar acordar cheio de sono, prometendo outra vez que nessa noite vou-me deitar cedo, o meu mau humor matinal vai desaparecer com a vista fantástica do amanhecer e o meu ânimo vai aumentar quando vir todos os sorrisos dos meus alunos mais uma vez.


Porque este sim, é o verdadeiro privilégio de ser professor.

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