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Blog de Experiencias

VOLUNTURISMO: A TUA “AJUDA”…QUE NÃO AJUDA

  • pmdscortez
  • 28 de dez. de 2018
  • 9 min de leitura

E aquele teu amigo que descobriu um voluntariado de 2 semanas num orfanato no Cambodja? Ah, já para não falar da tua amiga que encheu o feed do Instagram de fotografias com crianças, depois de um “Verão inesquecível e inspirador” a dar aulas no Gana. Quase que me ia esquecendo da prima que vai encher a mala de suplementos básicos para levar para a Índia.

Mas o que é que pode haver de errado em “querer ajudar quem precisa” ou dispensar o nosso tempo e esforço para contribuir para uma causa social?

Na verdade, existem várias razões que te devem fazer repensar o teu próximo plano exótico em que vais vestir um fato que nem sempre combina.

Algo do estilo: calças repletas de elefantes de quem viajou umas semanas pelo Sudoeste Asiático (são bem confortáveis, tenho de admitir) e a t-shirt da tua organização de voluntariado.

Calças da Tailândia, t-shirt com elefantes, bolsa da máquina fotográfica….só me falta um sinal neon ao pescoço a gritar “Turista”

A analogia não faz sentido? Pode ser que as razões em baixo te deem uma melhor imagem, menos engraçada mas mais informada:

ESTÁS A AJUDAR ALGUÉM PARA ALÉM DE TI PRÓPRIO?

Durante dois anos trabalhei numa organização de estudantes que tinha como missão desenvolver liderança nos jovens através de experiências de voluntariado ou trabalho remunerado.

Na realidade a maior parte dos estudantes com que trabalhávamos optava por uma experiência de voluntariado de curta duração, algo que ocupasse parte das suas férias de Verão.

Em baixo seguem alguns exemplos destas experiências de voluntariado:

  1. “Vem ensinar inglês numa escola em Hyderabad, na Índia”

  2. “Ajuda a construir casas numa aldeia rural do Quénia”

  3. “Faz parte do desenvolvimento de órfãos no Cambodja”

À primeira vista todos parecem óptimos programas certo? Países interessantes de conhecer e ao mesmo tempo ajudar uma boa causa: uma combinação perfeita! Um olhar mais crítico e estes programas passam a ser menos apelativos.

Voluntários não preparados e dependência emocional

“Vem ensinar inglês numa escola em Hyderabad, na Índia”

Sim, o teu conhecimento de inglês é superior comparado com crianças de ensino intermédio numa escola em Hyderabad, mas isso faz de ti um professor? Tens a capacidade de ensinar e compreendes o contexto local de forma a poderes ser o responsável de educação formal destas pessoas?

E sabes fazer isso melhor do que um local? Se sim, óptimo (e fico impressionado com o teu conhecimento profundo do sistema de ensino indiano), caso contrário o teu lugar podia estar a ser ocupado por um profissional local.

A minha experiência como professor de inglês em Bogotá, mostrou-me que, mesmo em 6 meses, nem sempre é fácil transmitir o teu conhecimento para os teus alunos de uma forma duradoura. Prova disso, é a imagem inicial deste artigo onde estou a agarrar o braço da Maria, a minha aluna que no meu dia de despedida ainda não tinha acertado com a palavra “Speak”.

Os meus dedicados (e traquinas) alunos em Bogotá

Para além da falta de preparação de voluntários, existe evidência de que expor crianças a diferentes professores num curto de espaço de tempo, promove um ciclo vicioso negativo de dependência emocional que é constantemente quebrado.

Põe-te na pele delas: um dia estás lá a ensinar-lhes com um enorme sorriso na cara, mas passadas 6 semanas, de repente desapareces e sabe-se lá quando voltas (se é que voltas).

E isto vai-se repetir mais e mais vezes – poucos dias depois de partires outro voluntário vai chegar e o ciclo de afeição das crianças…vai recomeçar com um prazo determinado.

A tua contribuição é mesmo necessária?

“Ajuda a construir casas numa aldeia rural do Quénia”

Ajudar a construir casas?? Uma mão amiga é sempre bem-vinda, mas é mesmo isso que as pessoas na zona rural do Quénia precisam mais?

Normalmente já tens alguns problemas quando te pedem para fazer de carpinteiro lá em casa. Será que vais mostrar como construir uma casa com estrume de vaca a pessoas que o aprendem a fazer há n gerações?

Ah, e o argumento da mão amiga não funciona, existem mesmo muitas por lá.

O dinheiro que investiste na organização e nos voos que te puseram nesta remota aldeia do Quénia se calhar tinha uma melhor utilização: desde tanques que retém as águas da chuva, passando por ferramentas agrícolas decentes até fertilizantes que permitem aumentar a eficiência agrícola.

Durante a minha investigação para a tese foi fácil constatar que no Quénia não há falta de mãos para ajudar, mas sim falta de investimento nas pessoas

O dinheiro que te levou a estar fisicamente a ajudar a construir uma casa (que muitas vezes nem é necessária) poderia aumentar a produtividade agrícola e por consequência o rendimento das famílias que estás a “ajudar”. Põe-te no lugar do agricultor local e é te dada a escolha:

  1. A: Uma pessoa bondosa vêm nos ajudar a construir mais uma das nossas casas

  2. B: Uma pessoa bondosa angariou fundos para podermos ter acesso a novas ferramentas e fertilizantes que usamos no dia-a-dia

Parece mesmo um daqueles casos em que o plano B é a melhor alternativa não é?

Um Negócio de Biliões

“Faz parte do desenvolvimento de órfãos no Cambodja”

Não tenho qualquer noção da dificuldade que é crescer sem pais, mas muitos dos órfãos no Cambodja também não.

80% das crianças em orfanatos no Cambodja têm pelo menos um dos pais vivo e o número de orfanatos no país aumentou 60% entre 2005 e 2015, estando metade destas instituições localizadas perto dos dois maiores centros turísticos do país (não é pura coincidência).

As organizações de voluntariado são o motor que gera o incentivo económico para pais deixarem crianças nestes centros. Um orfanato no Cambodja passou a ser um negócio lucrativo que recebe pessoas que normalmente têm pais e vem de países bem diferentes do Cambodja.

Uma criança no Cambodja (fora de um pseudo-orfanato)

Afinal, o voluntariado na sua essência é uma troca de ajuda sem expectativa de retorno financeiro. No entanto, existem cada vez mais casos de organizações que se aproveitam de uma receita milionária:

Vontade de ajudar / ter impacto social + Falta de informação = $$$$$

Segundo a organização ReThink Orphenages, o volunturismo cresceu para uma indústria no valor de 173 biliões de dólares.

Claro que todo este dinheiro poderia ser uma oportunidade para investir nas comunidades em que os projectos estão alocados. Será que é isso que acontece?

Bem, se já chegaste até aqui, provavelmente as tuas esperanças de “um mundo melhor” através de volunturismo não são optimistas.

Infelizmente, estou aqui para confirmar as tuas expectativas. Apenas $1 em cada $4 que gastas pela organização que te inscreveste, chega realmente ao projecto local em que estás inserido.

WHITE SAVIOR COMPLEX

1, 2, 3… selfie!

Mais um retrato no meio de milhões, todos eles com algo em comum: um branco rodeado de sorrisos africanos. É irresistível não é? “Aqui as pessoas são felizes com pouco” ou algo semi-profundo (e ofensivo) do género vai aparecer como descrição da fotografia.

O quê? Mas agora até partilhar fotografias com crianças felizes também é um problema??

O White Savior Complex (Complexo do Branco Salvador, numa tradução portuguesa às três pancadas), é um conceito criado em 2012 por Teju Cole que se refere a simplificação, por parte de ocidentais, de problemas complexos que se passam em África.

Mais concretamente, a realidade (cada vez maior) de pessoas mais poderosas simplificarem problemas complexos noutros países com o objectivo de construir um espaço para eles próprios onde se sentem bem por “fazer a diferença”.

Aqui está um exemplo perfeito de uma fotografia desnecessária

Depois de uma tarde a jogar futebol em Ongata Rongai, uma das favelas de Nairobi. Aqui as pessoas são felizes com pouco.

Ou seja posto de uma forma mais fácil:

As crianças em África precisam muito de ajuda –> O branco chega –> Todos ficam felizes porque o branco salvou o dia

O problema aqui não está na fotografia em si (afinal quem não gosta de guardar uma boa memória), mas sim no significado que isso passa. A tua fotografia, para além de receber uma chuvada de likes no Instagram, vai ser mais uma pincelada no quadro de desespero e pobreza, a pintura que temos vindo a fazer de África há anos.

A imagem de um continente (que é tratado como um único país) em constante pobreza, guerra e sofrimento que é incapaz de resolver a sua própria situação sem a preciosa ajuda ocidental.

Às vezes parece fácil esquecer que falamos do continente com mais países no mundo (54), onde 17% da população vive e ironicamente…onde muitos dos problemas que ainda persistem hoje em dia foram ou são causados por interesses ocidentais.

Ano após ano, centenas de milhares de volunturistas são uma representação obscena do White Savior Complex, contribuindo para perpetuar um estereótipo desfasado da realidade.

EXPERIÊNCIA DE CURTO PRAZO

Uma das grandes “vantagens” do volunturismo é a possibilidade de poderes aproveitar um período de tempo fora das tuas obrigações (férias de Verão, por exemplo) para equilibrar a tua balança de boas acções. Muitas pessoas tiram entre um a dois meses da sua vida e partem para esta aventura.

Chegados ao terreno, o plano passa por contribuir para um projecto social umas 2/3 semanas e viajar o resto do tempo.

Ou seja, em muitos dos casos, os voluntários acabam por dedicar à volta de um mês ou menos ao projecto que supostamente foi a motivação central que os levou até certo país.

Põe em as coisas em perspectiva e imagina-te um voluntário de 1 mês que está a dar aulas numa escola nos arredores de Yangon, antiga capital do Myanmar:

1ª semana – chegaste, estás a habituar-te à realidade nova do teu dia-a-dia e às expectativas do teu trabalho

2ª semana – Finalmente já acertas com o caminho para a escola sem olhar para o Google Maps. A maior parte dos teus alunos já reconhecem o teu nome e facilmente sorriem para ti

3ª semana – Sabes uns básicos de birmanês. As brincadeiras com os teus alunos fora da sala de aula já é algo natural.

4ª semana – Sentimento de melancolia por deixares uma cidade querida para ti. Arrancam as despedidas e os “see you soon” que não são realmente assim tão soon.

Despedir-me dos meus alunos em Bogotá foi dos momentos mais marcantes da minha experiência. Espero que o nosso “see you soon” esteja realmente para breve

Passou rápido não foi? É sem dúvida difícil ter um impacto sustentável e promover uma visão a longo-prazo quando a altura ideal em que podes ter uma contribuição positiva (quando és menos turista e mais membro da comunidade) coincide com a tua despedida.

Se não te identificas com este mês de emoções alucinantes, vira a perspectiva ao contrário: num Sábado, na praia de Carcavelos, conheces um Sul-Africano que está a dar aulas de inglês no bairro 5 de Maio durante 3/4 semanas.

A ideia vai-te parecer porreira ao início, mas não te vais perguntar como é que ele não sendo professor e não sabendo português se está a safar com as crianças (irrequietas, no mínimo) do 5 de Maio?

MAS, MAS…ENTÃO NÃO POSSO FAZER VOLUNTARIADO??

CLARO QUE PODES! A tua ajuda vai ser sempre enormemente valorizada, desde que descubras onde precisam realmente de TI.

Algumas dicas para garantires que o teu voluntariado contribui não só para o teu crescimento, mas mais importante, para o desenvolvimento da comunidade que estás a apoiar:

1 Informa-te melhor sobre a organização que promove o projecto de voluntariado que estás interessado. Se te cobram uma tarifa altíssima (para trabalhares de borla), o site está cheio de fotografias dos voluntários a viajar e podes escolher o pacote de 1-2 semanas (!!)… há uma boa hipótese de estares a procurar no lugar errado.

2 Compromete-te realmente com o teu projecto e os teus sonhos. Queres contribuir para um projecto social? Mas também queres aproveitar para viajar? Então dedica 6 meses / 1 ano à tua aventura. Tira um gap year, um ano sabático, um tempo entre mudança de trabalhos… tens uma vida inteira pela frente. E acredita não gastas muito menos dinheiro a fazer voluntariado e viajar à pressa de um lado para outro comparado com ficares muito mais tempo a conhecer verdadeiramente o lugar e as pessoas que te rodeiam.

3 Descobre o projecto que tira o melhor de ti. Investe algum tempo em procurar um voluntariado que procura um pessoa com o TEU perfil

4 Procura pelos teus contactos: de certeza que existe para aí uma amiga que já fez um voluntariado e conhece pessoas no terreno que te podem dar a conhecer oportunidades onde a tua ajuda é realmente necessária.

5 Tira fotografias do que vês e não do que esperavas ver: uma fotografia com um local que construiu um tanque inovador que abastece água às populações ao teu redor rende menos validação nas redes sociais do que a típica fotografia das criancinhas felizes à tua volta. Depois do teu voluntariado o que combina melhor contigo: manutenção de preconceitos misturado com falsa sensação de influencer ou promover uma imagem diferente (e bem real) do potencial da comunidade que te recebeu?

Então como vai ser o teu próximo voluntariado? Um combinado de viagens e “boas acções” que no final do dia beneficiam-te a ti mais do que qualquer outra pessoa? Ou uma ajuda informada que beneficia de forma sustentável uma comunidade e traz prosperidade a longo-prazo?

O meu conselho: pendura esse fato de volunturista 🙂

 
 
 

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